Fonte: Júlio Olivar/Rondoniaovivo
Quem passa pela BR-364, entre Vilhena e Pimenta Bueno, encontra Marco Rondon, que tem cara de cidade-fantasma. A cerca de 60 km de Pimenta Bueno (sul de Rondônia), a vila conta apenas dez casas habitadas. É tudo o que sobrou dos áureos tempos, em que o movimento era intenso, com direito a ter hotel, bares, farmácia, escola.
Uma pousada abandonada do lado oposto ao da vila e os escombros cheios de vestígios mostram que, ali, um dia houve movimentação. Há até um cofre jogado no meio do mato. A vida era intensa, com direito a muitas festas, pois há centenas de garrafas no caminho que leva ao Rio Marco Rondon, coberto por uma ponte de concreto com vão de 30 metros.
Ali, vivia um suíço que administrava a pousada e adorava brindar; “toda tarde ele tomava cerveja, gostava de champanhe e de vinhos. Estas garrafas eram dele”, conta dona Arenil Oliveira, 52 anos, que mora na vila desde que nasceu.
Hoje abandonada, a Pousada São Carlos era o ponto de referência do vilarejo. O menino Zael, de cinco anos, mora perto e adora brincar no amplo terreno, onde há muitas árvores. Dali, observa a movimentação de carros que passam pela estrada, mas ninguém para.
Sorridente e ouvindo histórias da mãe, Nilva, Zael fica encantado mostrando as árvores e escreve seu nome com giz de cera na parede da recepção da pousada, um cômodo com vidraças quebradas.
A sede da pousada é bem simples, com piso de vermelhão e quartos sem banheiro. Andando pelos corredores, a gente tem impressão de algo fantasmagórico, igual um cenário de filme. “Aqui tem fama de ser mal-assombrado”, explica Nilza, rindo.
O povoado de Marco Rondon tem este nome porque, no início do século XX, a Comissão Rondon passou com a linha telegráfica Cuiabá-Santo Antônio pela região. A rodovia seguiu, aproximadamente, o traçado dos picadões abertos pelos militares que, além do telégrafo, pesquisaram e mapearam tudo, dando nomes a acidentes geográficos e catalogando as línguas indígenas.
Marco Rondon já era citado desde antes, mas se resumia apenas ao rio e ao marco mesmo. Só a partir de 1960, surgiu como vila, quando foi aberta a rodovia, que trouxe um imenso fluxo migratório. Logo, houve apostas de que ali também se tornaria cidade, como aconteceu com outras localidades ermas da Amazônia.
Na época, Rondônia nem estado era – o que só aconteceu a partir de 1982. O antigo território federal tinha, em 1960, apenas 50 mil habitantes e se resumia a dois municípios: Porto Velho e Guajará-Mirim. Foi então surgindo muitos “patrimônios” – como chamavam as vilas insipientes. Marco Rondon era uma delas.
Os antigos patrimônios hoje são as outras 50 cidades, além dos distritos, que compõem Rondônia e que progrediram a partir da rodovia Brasília-Acre — a BR-29 que foi rebatizada como 364 em 1967.
Marco Rondon poderia ser mais uma das cidades. Mas, como diz sua população, “o lugar não foi pra frente”. A povoação já surgiu com sérios problemas. Em consequência da rodovia construída do dia para a noite – foi iniciada em março e já estava inaugurada em julho de 1960 – houve embates entre colonizadores e indígenas cintas-largas, que ficaram deslocados diante do progresso.
Alguns deles passaram a viver nas imediações do vilarejo, fugindo de outra área, na divisa entre Rondônia e Mato Grosso. Em 1963, muitos desses ancestrais foram mortos no Massacre do Paralelo 11, no Vale do Juruena. Açúcar com arsênico, dinamites jogadas de avião e tiros de metralhadora – ações atribuídas a seringalistas – teriam matado milhares de indígenas, segundo o Relatório Figueiredo, repercutido internacionalmente.
Os que sobreviveram do Paralelo 11 se espalharam. Colonizadores tinham suas casas invadidas e respondiam a tiros para espantar os indígenas. Em 1965, cerca de 70 deles ocuparam a rodovia e passaram a atacar caminhões e carros, inclusive saqueando cargas. No garimpo de cassiterita no vale do Roosevelt, o aviso era: passem com cuidado e depressa pelo Marco Rondon.
Foi preciso uma força-tarefa da Funai, criada em 1967 em substituição ao SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O órgão federal foi extinto porque estava mergulhado em corrupção e inoperância, segundo ainda o Relatório Figueiredo, um documento de mais de 6 mil páginas elaborado pelo procurador federal Jader Figueiredo.
Por desconfiança dos “civilizados”, os cintas-largas se negavam a travar contatos porque tinham sido vítimas de atrocidades e se sentiam desprotegidos pelo sistema. Somente em 1971, o sertanista Apoena Meirelles conseguiu, pela primeira vez, ir a uma aldeia desse povo e, assim, foi pactuada a pacificação, do ponto de vista do colonizador.
Quando Apoena chegou ao aldeamento e foi recebido pelos cintas-largas, havia sido trucidado, às margens do Rio Roosevelt, o jornalista Possidônio Bastos – ainda não se sabe quem foram seus algozes, ora apresentados como indígenas, ora como mineradores e loteadores. O jornalista era aliado dos indígenas e denunciava a violência, destacando o esquema imobiliário que surgiu nas terras dos povos da floresta, sem haver um projeto que pudesse assegurar a sobrevivência deles. A ordem do governo era “integrá-los à civilização”.
Garimpeiros de cassiterita, seringueiros e pecuaristas chegavam às dezenas de outros pontos do país e iam se instalando dos dois lados da estrada, com anuência do governos federal e territorial que estimulavam a ocupação. Havia o slogan “Integrar para não entregar” patrocinado pelo Palácio do Planalto com objetivo de povoar a Amazônia, a qualquer preço.
Foi assim que o solo da área que mescla dois biomas, Cerrado e Amazônia, foi explorado. Além da mineração, da lavoura e da pecuária, havia um rescaldo da extração seringalista – ciclo econômico que durou décadas e que acabou em definitivo, na região, no começo dos anos 1970.
Em 1973 foi criada a Reserva Roosevelt, com 2,7 milhões de hectares, onde vivem os cintas-largas, em uma terra rica em jazidas de diamantes. Permanecem os contrabandos e os conflitos que, em 2003, levaram 29 garimpeiros a serem assassinados pelos cintas-largas, no município de Espigão do Oeste.
O tempo passou, hoje a paz reina no Marco Rondon, misturando os sons da mata e do rio, com os das carretas velozes que passam pela rodovia, a todo instante levando, principalmente, soja para o porto de Porto Velho. Além das dez famílias que vivem na vila, em casas sem cercas, há muitas fazendas e sítios que atuam no ramo pecuário, que é o forte da economia local.
O Estado esqueceu o Marco Rondon. Uma placa de trânsito está caída e jogada à beira do rio, a outra está escondida pelo matagal na encosta da rodovia, onde o nome do bairro está grafado erradamente como “Marcon Rondon”. Desdém é a tradução.
Fonte: Júlio Olivar/Rondoniaovivo